A Organização das Nações Unidas (ONU) declarou que o planeta está em fase de aceleração do aquecimento global. Ou seja, segundo o secretário-geral, António Guterres, após o mês de julho mais quente da história desde 1970, mudamos de status e agora entramos na era da ebulição. A expressão veio com um alerta, pois o planeta terra irá sofrer um aumento significativo das temperaturas daqui em diante.
Os exemplos estão cada vez mais claros: temos mudanças de temperatura diariamente, de maneira que o ciclo das estações tem se confundido e se misturado durante todo o ano. Às vezes, acordamos numa segunda-feira com dia típico de inverno e fechamos a semana como um dia de verão.
As estações intermediárias, como outono e primavera, estão cada vez menos aparentes. Se continuarmos no processo de consumo dos recursos naturais da forma que, ainda, continuamos fazendo, logo não teremos mais estações do ano e sim picos de extremo calor, chuvas intensas e em grande volume, secas prolongadas e ventos fora do comum.
Enquanto partes integrantes da construção civil, sabemos que, no Brasil, não alcançamos mudanças expressivas nos processos de construção, projeto e execução de obras de modo a mitigar e adaptar a nossa arquitetura aos efeitos climáticos mencionados.
Ainda temos um controle superficial do uso dos insumos, recursos naturais e sobretudo da gestão dos resíduos. Atualmente, o ato de construir no Brasil ainda é realizado por pessoas com conhecimento empírico e sem o devido acompanhamento do Estado.
Segundo pesquisa realizada pelo Datafolha encomendada pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU), de 2016 a 2021, apenas 18% da população brasileira contratou os serviços de arquitetos e/ou engenheiros para a sua obra. Isso demonstra que 82% da população permanece sem acesso ao serviço de profissionais.
Atentando-se para a realidade do que já foi construído com o devido acompanhamento profissional, também observamos um número considerável de edifícios (casas e prédios) sem o mínimo de aplicação de estudos climáticos, levando a problemas de desconforto ambiental dentro das próprias edificações.
Se direcionarmos nosso olhar para as áreas sem projetos, que compõem boa parte das nossas cidades, principalmente nas ocupações irregulares presentes em várias localidades brasileiras e da América Latina, o aquecimento da Terra tem trazido e irá trazer muito mais desconforto, problemas de saúde e até uma maior ocorrência de letalidades.
Segundo a BBC Brasil, em reportagem sobre o aquecimento das nossas cidades, locais com mais arborização, os quais se constituem em sua maioria de bairros nobres, têm temperaturas cerca de 2 a 3 °C a menos do que em locais com baixa distribuição de áreas verdes, além da presença de arquiteturas que beneficiam o conforto ambiental das pessoas que lá vivem.
No oposto dessa realidade, temos moradores de periferia e áreas mais pobres que vivem dentro de casas que não possuem a menor condição de facilitar as trocas térmicas para eliminar o calor excessivo, o que é agravado com um entorno urbano geralmente árido e sem condições de resfriamento natural.
Mas, como a Arquitetura se encaixa neste problema?
Nos projetos de qualidade em conforto ambiental temos uma realidade bem diferente, uma vez que estes se utilizam dos preceitos previstos nas normas brasileiras e internacionais de desempenho.
Essas edificações têm controle da incidência solar, do ganho e perda de calor, além da entrada e saída da ventilação natural, realidade que está presente em uma pequena porcentagem das obras brasileiras.
Nessas edificações, mesmo com as altas temperaturas, o controle do ganho de calor previsto em projeto vai facilitar a manutenção dos níveis de conforto a longo prazo. Diferente da realidade das pessoas que não tem essa condição de controle das ações do clima sobre a própria moradia.
Desde 2008, pela lei n.º 11.888, que garante a Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social (ATHIS), as pessoas de baixa renda têm direito ao acesso a profissionais de arquitetura e engenharia.
Lei que está sendo cumprida a passos muito lentos, graças à luta das entidades de arquitetura e urbanismo no Brasil, as quais têm tentado suprir com suas próprias iniciativas a carência por ações políticas para a mudança desta realidade de maneira efetiva e em grande escala.
Os profissionais que têm atuado em ATHIS vêm auxiliando na salubridade das construções das áreas de ocupação irregular. Mas, ainda assim, a habitação digna é uma realidade bem distante da maior parte da população.
No Brasil, temos realidades muito diferentes e distantes do ponto de vista social e técnico. Temos que ser assertivos no desenvolvimento dos projetos de arquitetura e nos direcionamentos das áreas urbanas.
Repensar nossa política de habitação e ocupação das nossas cidades deve ser prioridade no auxílio dos novos passos para manter a população confortável diante dos efeitos da ebulição global, pois boa parte da população brasileira vive em locais de risco, como áreas de mata ciliar, alagadiças, encostas, morros e mangues.
A partir de hoje, o ideal seria conquistar a construção efetiva de políticas de reforma urbana. Isso envolveria garantir a adequação das edificações que não atendem as condições ideais de conforto ambiental.
Além disso, poderíamos atuar diretamente na transformação das áreas de risco, realocando as pessoas para locais onde tenham condições de viver com mais acesso à vegetação, incluindo a construção de novos parques e áreas verdes em nossas ruas, permitindo a permeabilidade do solo, replantando árvores e restaurando a natureza nos locais de risco.
Esse processo não é fácil e não deve ser pensado a curto prazo. O planejamento deve ser com previsão dos resultados nas próximas décadas.
A mudança na atuação dos Arquitetos e Urbanistas, gestores públicos e investidores deve ser para ontem. Não temos mais tempo para esperar. Precisamos unir forças e buscar a melhoria de vida das pessoas e a dignidade das nossas cidades, e, principalmente, restaurar nossa natureza.